sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Beats X Hippies

Beats X Hippies*
Antonio Bivar


Assim como os existencialistas dos anos 40, os beatniks dos 50 — seja por analogia ou pela ordem natural da evolução — mostram muitos pontos em comum com os punks. O gosto pelo escuro, pela roupa preta, pela consciência à esquerda, por exemplo.

Apesar de ter tido como cenário-base a universidade de Colúmbia — onde aqueles que seriam as figuras mais importantes do movimento, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, praticamente se conheceram —, o movimento beat ficaria ligado aos cenários do Village em Nova lorque e da zona boêmia de São Francisco, Califórnia, pelos antros e cafés boêmios de ambas as costas. A postura beat tinha muito de existencialista. Jovens letrados da classe média baixa e alta querendo tudo que fugisse aos rigores escola- família-futuro-vida doméstica. Era o novo sonho de liberdade, a retomada do pensamento filosófico e naturalista de Thoreau e da poesia escrita e vivida por Walt Whitman. A vida aventureira e simples dos hobos (andarilhos, vagabundos) e dos mais pobres. Ricos porque livres. Dormir ao relento, trabalhar em navios mercantes para conhecer a vida rude dos sete mares e as alegrias não menos rudes de cada um de seus portos. Fumar haxixe no Marrocos, meditar na Índia, jogar xadrez ou escrever poemas e romances nos cafés de Paris. William Burroughs em Tânger; Allen Ginsberg no Tibete; Jack Kerouac on the road (pela estrada afora). E o jazz, como frente musical. A pintura abstrata, Jackson Pollock. Os beatniks foram os primeiros a difundir, para a juventude ocidental, o zen-budismo, a meditação transcendental, as experiências da vida ao ar livre, as caronas, a celebração de si mesmo em harmonia com o universo. Kerouac em São Francisco, bebendo vinho barato e comendo pizza; ou alternando cerveja com uísque; ou passando dias e noites trancado e escrevendo sob o efeito excitante da benzedrina e ao som do jazz. Cool jazz: Kerouac dizia que, quando Miles Davis soprava seu trompete, o som era como longas sentenças escritas por Proust. Jack primeiro sonhara ser um moderno Thoreau; depois quis ser o Proust da América, de sua geração, de seu povo; leu Moby Dick e desejou ser o novo Herman Melville. Acabou sendo ele mesmo, um original — On The Road é uma das obras máximas de todo o trajeto da literatura americana. Depois de todo o sonho que ele apregoara ter sido espalhafatosamente vivido pelos hippies, na geração seguinte, Jack Kerouac morreu de desgosto, tédio, alcoolismo, hérnia e uma hemorragia abdominal, em outubro de 1969, na Flórida. Aos 47 anos, jovem ainda.

Dos beats originais, William Burroughs e Allen Ginsberg continuariam na ativa nas décadas seguintes e Ginsberg, em 1982, participaria de uma das faixas do Combat Rock, LP do grupo The Clash, punk.

(...)


Como o leitor está lembrado, os beatniks gostavam mesmo é de jazz. Assim, nos sessenta, o movimento hippie não só assimilou as idéias, a cultura e os sonhos dos beatniks, mas também incorporou o outro lado dos anos 50, o rock ’n’ roll (agora tratado como música pop). E acrescentou um terceiro dado, então novíssimo: o LSD. A junção desses três — cultura beat, a música rock e mais o LSD — despertaria a atenção do mundo. Havia algo de novo e de muito atraente na música, no visual e no que esses hippies tinham a dizer.

Qual será o segredo da beleza (ou da estranheza) desse movimento? Entre outros detalhes “chocantes”, a descoberta e o uso do LSD pelos hippies fez com que o preto — a cor praticamente única dos beatniks (e existencialistas) — caísse instantaneamente em desuso, dando lugar não só ao degradé das sete cores do arco-íris mas também a todas as cores derivadas, E pela primeira vez o mundo ouvia essa palavra: psicodélia.




Em 1969, com o assassinato de Sharon Tate e amigos, pelos seguidores do satânico Charles Manson — a vítima era para ser Doris Day! Nenhuma merecia, convenhamos — a imprensa reacionária, para “cortar o barato”, atiçou que Charles Manson e seu pessoal eram hippies. Só porque tinham cabelo comprido e viviam em comunidade num deserto ali perto. Até podiam ser, pois, assim como tudo, existem hippies e “hippies”. Mas não. Era como se todos os hippies fossem iguais a Manson. E os apavorados do Sistema passaram a olhar os hippies como assassinos em potencial. Então tudo começou a ficar difícil. Ficou tão difícil que em seguida morreriam Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison; os dois primeiros de overdose e o último, numa banheira em Paris, com um sorriso de beatitude nos lábios. Ficou tão difícil que nem bem completara um ano desde o assassinato de Sharon Tate, e John Lennon se via como que intimado a dar o toque de recolher. Helter Skelter, uma das músicas dos Beatles, era a favorita do grupo de Charles Manson, que via nela uma série de mensagens ocultas. Paranóicos.
E assim acabava o sonho de toda uma geração. Mas não tão assim de pronto. Muitos achavam que o sonho estava apenas começando (estes, muito novos, estavam nos seus 1 5, 16 anos) e continuaram vivendo suas experiências nos anos seguintes. Até, digamos, 1973, quando desabou a crise do petróleo e do resto, Crise inclusive do LSD que, aos poucos, foi sumindo do mercado alternativo. Nesse meio tempo muitos foram correndo procurar emprego; outros voltaram para a casa paterna (filhos pródigos); os ajuizados amadureceram; putros retornaram as escolas; teve quem foi ser motorista de táxi e uma quantidade relevante deles casou e mudou; outra ficou perdida; há quem continue sonhando até hoje assim também como aqueles que “não voltaram”. Ninguém sabe exatamente onde estes últimos estão.

O LSD (ácido lisérgico) não foi inventado por cientistas ou químicos hippes e nem é um produto dos anos 60. Não sei agora quem o inventou (dizem que foi inventado por cientistas na Suíça) mas sei que o escritor inglês Aldous Huxley já fizera várias experiências lisérgicas nos anos 30 (ou 40). Huxley até escreveu um livro sobre o assunto, As Portas da Percepção. Um livro que os hippies, claro, devoraram. E também antes dos hippes, em 1961, um beatnik — e qual deles senão Jack Kerouac? — fizera uma única experiência, guiado pelo guru do LSD, Timothy Leary dr. Timothy Leary, em Harvard. Kerouac tomou o LSD e teve uma experiência paranóica, chegando à conclusão de que o alucinógeno em questão havia entrado na América via Rússia, como parte de um complô para enfraquecer os Estados Unidos.

Uma das diferenças básicas entre as pretensões beatniks e hippies — e talvez a mais óbvia delas — é que enquanto Jack Kerouac, no seu tempo, pretendia ser o novo Proust, na movimentação hippie John Lennon chegou a afirmar serem os Beatles mais importantes que Jesus Cristo; e Eric Clapton era considerado DEUS (a imprensa especializada, claro, deve ter tido um dedo nisso tudo). Isso em meio à mensagem maior que era “paz e amor”. E os hippies genuínos realmente desejavam paz e amor ao mundo. Mas era tanta coisa ajudando a “expandir a mente” que, todos os que viajavam e dormiam em sacos de dormir, a título de mera curiosidade ou de total entrega, passavam a maior parte do tempo tendo vislumbres do Divino e do Eterno. Era Mãe Terra nosso planeta. E a Lua, nosso satélite. E lunáticos, não poucos. Lunáticos ou não, para os hippies não fazia a menor diferença. Afinal, um dos santos simpatizados pelo movimento, São Francisco de Assis, numa de suas iluminações medievais dissera: “A loucura é o sol que não deixa o juízo apodrecer”.



Título meramente ilustrativo do exceto do livro O Que é Punk (Coleção Primeiros Passos, n 76). Antonio Bivar. Editora Brasiliense, São Paulo, 2001

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